Uma ótima matéria que mostra que modelos matemáticos não são exatos, mas apenas precisos quando bem formulados, o que depende da vontade humana.
Fulano está com 34% de intenções de voto.
Fome atinge 32 milhões de brasileiros.
São realizados 4 milhões de abortos por ano no Brasil.
Por Thereza Venturoli
O homem nem sequer sonhava com eleições de massa, contabilização da
miséria ou de abortos quando Santo Agostinho, no século VI, alertou os
bons cidadãos contra os matemáticos e todos aqueles que fazem profecias
vazias. Segundo Agostinho, o perigo é que eles tenham feito um pacto com
o Diabo para obscurecer o espíritio e manter o homen no cativeiro do
Inferno.
Pactos demoníacos à parte, ainda hoje é com uma boa dose de ceticismo
que o brasileiro encara as chamadas estatísticas. Não importa o que
pretendam retratar como vai a saúde ou a economia do país, o que pensa
ou como se coporta a população , os grandes números calculados por
órgãos oficiais ou institutots particulares são, senão diabólicos, pelo
menos muito misteriosos.
A desconfiança tem seus motivos. O brasileiro está se acostumando a
assistir a infindáveis bate-bocas sobre a validade dos números que lê.
Até parece que atrás de uma pesquisa corre sempre uma polêmica. Quando
dois especialistas falam, os que não são do ramo abaixam a orelha.
Assim, quem não conhece a metodologia, não sabe o que é variável e nunca
viu de perto a tal margem de erro, fica nadando num mar de dúvidas.
Afinal, pode-se ou não confiar no que os números dizem? A dúvida é
tanta que o brasileiro já incorporou uma nova palavra ao seu
vocabulário: chutometria. O termo pode ser definido como sistema de
medir por meio de chutes, quer dizer, por palpites.
Mas nem tudo é tão obscuro ou vago no mundo das estatísticas. A
verdade é que elas são fundamentais para a compreensão da realidade. O
problema é interpretá-las corretamente. É preciso distinguir, primeiro,
os dois tipos de estatísticas as calculadas por amostragem, como as
pesquisas sobre a intenção de voto, e as que envolvem a contagem pura e
simples, como o censo da população, feito pelo IBGE. Deve-se saber
também que há algumas regras básicas empregadas na contabilidade e na
generalização dos dados obtidos. E tomar alguns cuidados pra não cair em
ciladas.
A única maneira de se conferir o resultado exato de uma eleição é
realizá-la hoje mesmo, afirma o estatístico Carlos Alberto de Bragança
Pereira. Como isso é impossível, temos de utilizar os métodos de
pesquisa por amostragem. Bragança Pereira é diretor do Instituto de
Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (USP) e foi
consultor da Organização dos Estados Americanos (OEA) nas eleições
presidenciais do Haiti, El Salvador e Nicarágua.
A amostragem é um dos principais instrumentos da Estatística a área
da matemática que lida com os grandes números. Os estatísticos
preocupam-se com o levantamento, a organização e a análise dos dados de
um conjunto a população de um país, as mulheres de uma cidade ou as
moléculas do corpo humano. Isso pode ser feito de duas maneiras:
contando todos os elementos do conjunto (quando isso é possível), ou
contando uma pequena parte e calculando os re-sultados globais por
generalização.
Amostra é uma fatia separada para estudo do universo. É como se
alguém quisesse descobrir os ingredientes de um bolo de chocolate sem
desmilingüir o bolo inteiro e cortasse, para análise, apenas um pedaço.
Se a farinha, o fermento, o chocolate e os outros elementos estão bem
misturados na massa, a proporção empregada de cada ingrediente pode ser
inferida de uma fatia qualquer. No caso das pesquisas eleitorais no
Brasil, os ingredientes do bolo de 100 milhões de eleitores não estão
bem misturados. Apesar disso, podemos chegar a uma projeção muito
próxima da realidade falando apenas com uma fatia desse conjunto, de 2
500 pes-soas, garante a estatística Renata Nunes César, gerente do
Datafolha, instituto ligado ao jornal Folha de S. Paulo.
A base do método de análise de um todo por suas fatias é a teoria da
probabilidade, criada por dois importantíssimos pensadores do século
XVII o filósofo, matemático e físico francês Blaise Pascal (1623-1662)
e o matemático, também francês, Pierre de Fermat (1601-1665). Em 1654,
eles foram desafiados por grandes apostadores a calcular quanto uma
pessoa poderia ganhar ou perder em jogos de moedas, dados, cartas e
roleta. Foi assim que surgiram as fórmulas matemáticas que definem as
chances de um evento ocorrer.
Hoje, a Estatística é ferramenta indispensável em todas as ciências,
biológicas, exatas e sociais. Mas não se pode dizer que seja, ela
própria, uma ciência, afirma Bragança Pereira. Não se trata, tampouco,
de adivinhação ou magia. É um método de ‘fotografar' o
presente e fazer projeções para o futuro.
Para a foto sair com um bom foco, a parcela a ser estudada tem de ser
bem escolhida. Voltando ao exemplo do bolo eleitoral brasileiro, para
descobrir a quantidade de cada ingrediente que a receita leva, não basta
analisar um naco qualquer. É necessário pegar pedaços diferentes e
montar uma fatia que seja re-presentativa do bolo inteiro.
Para começar, as pessoas não estão distribuídas igualmente pelo
territó-rio nacional. Algumas áreas têm uma po--pulação maior que
outras. É preciso fazer entrevistas em proporção à densidade das
regiões.
Até esse ponto, os institutos de pesquisa empregam o mesmo sistema
de definição da amostra por sorteio e proporcionalidade, explica Örjan
Olsén. Sueco, no Brasil há 41 anos, Olsén foi diretor do Ibope e hoje
dirige sua própria empresa, a Companhia Brasileira de Pesquisa e Análise
(CBPA), em São Paulo. Daí para diante, podem-se seguir dois métodos
diferentes: a amostragem probabilística ou por quotas.
Pelo método probabilístico, tudo tem de ser sorteado dentro de cada
setor da cidade: primeiro, o quarteirão, depois, o domicílio e, dentro
do domicílio, a pessoa a responder o questionário.
Para representar a totalidade dos eleitores brasileiros, os
entrevistados têm de se encaixar nos diferentes tipos de pessoas que
existem no país. São as chamadas variáveis características, como sexo,
idade, ocupação, nível de instrução e si-tuação sócio-econômica, que
influem na opinião e no voto de cada um. É a própria experiência que nos
mostra quais variáveis devem ser levadas em conta, afirma o veterano
estatístico José Severo de Camargo Pereira, professor aposentado da USP e
consultor do Instituto Gallup.
Assim, como a população brasileira é composta 50% por homens e outros
50% por mulheres, aproximadamente, o número total de entrevistas tem
sempre de ser feito dentro dessa proporção.
Para garantir a proporcionalidade da amostra probabilística, temos um
pe-queno pulo-do-gato, conta Severo. Qualquer distorção é corrigida por
alguns cálculos matemáticos simples. Essas continhas de chegar são as
cha-madas ponderações.
Na pesquisa por quotas, é diferente. Antes de começarem as
entrevistas, é determinado quantas pessoas de cada tipo terá de haver no
final. Então, o entrevistador já sai procurando um número
definido de eleitores para compor a proporção representativa de cada
variável.
O principal objetivo do planejamento rigoroso da amostra é garantir a
menor margem de erro na pesquisa. Margem de erro significa exatamente o
que o nome diz um intervalo controlado dentro do qual podem variar
os resultados finais. Ou seja, um estudo bem planejado não elimina o
erro, apenas o limita.
O que pode parecer um preciosismo metodológico é muitas vezes o
detalhe que faz a diferença. Imagine que o can-didato A tem 34% das
intenções de voto e o candidato B, 30%, numa pesquisa com margem de erro
de 3%, bastante comum no Brasil. Isso significa que o instituto só
afirma que o candidato A está com algo entre 31% e 37% das intenções de
voto, e o candidato B, com 27% a 33% das preferências. Eles podem,
portanto, estar empatados, com 33%, ou afastados em até dez pontos
percentuais. Prestar atenção na margem de erro é o tipo de cuidado que
ajuda a avaliar corretamente as porcentagens que bombardeiam o cidadão.
Veja este resultado do censo de 1980: o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) levantou na ocasião que havia no Brasil
41.974.865 pessoas casadas, sendo 21.029.031 homens e 20.945.834
mulheres. Percebeu alguma coisa errada? Claro, se no Brasil legalmente
só existe casamento monogâmico e heterossexual (isto é, cada homem só
pode se casar com uma e apenas uma única mulher), como é que pode haver
um número maior de maridos do que de esposas? É que o IBGE entrevistou
pessoas de 15 anos de idade ou mais, explica Severo. Como no interior do
país é comum as mulheres se casarem até com 13 anos, estas ficaram fora
da contagem.
Este é um exemplo de escorregão metodológico. Mas os números podem
enganar de outras maneiras. Um erro no sistema de levantamento de dados,
na composição da amostra, na elaboração do questionário ou na
interpretação dos resultados, sem falar na forma de divulgação, podem
ser fontes de equívoco.
Muitas vezes os números que retratam a realidade brasileira são
fruto de meras estimativas. Nos últimos meses, alguns palpites
formidáveis têm recheado as notícias nos jornais e os discursos
polí-ticos. São dados alarmantes, como os supostos 4 milhões de abortos
realizados por ano no país, que tem aparecido freqüentemente na
imprensa. A estimativa foi atribuída à Organização Mundial da Saúde
(OMS), mas lá ninguém assume a autoria da pesquisa. Contar o
número de abortos no Brasil é praticamente impos-sível, comenta o
epidemiologista Ruy Laurenti, da Faculdade de Saúde Públi-ca da USP.
Simplesmente porque o aborto provocado é proibido por lei e, por isso, é
feito clandestinamente, sem registro.
Outro caso polêmico é o dos 32 milhões de brasileiros famintos. A
conclusão do trabalho do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)
é que mais de 9 milhões de famílias passam fome porque têm renda
abaixo de dois salários mínimos. Entre várias críticas levantadas à
metodologia utilizada, afirma-se que não se pode medir a fome das
famílias brasileiras por salários mínimos. Metade da população que vive
no campo, por exemplo, não é paga em dinheiro, mas em produtos
agrícolas, como mantimentos e animais. Daí, não se poder concluir, com
segurança, que toda família sem dinheiro no bolso seja necessariamente
faminta.
Uma simples palavra mal definida também pode ser responsável por
grandes disparates estatísticos. É o caso do número de desempregados no
Brasil. Os índices variam de 1 milhão a 20 milhões de pessoas. Qual o
número correto, afinal? Tudo depende do que se entenda por desempregado
quem não tem carteira assinada (nesse caso, a pessoa pode trabalhar
como autônomo), quem está procurando emprego, ou quem vive de peque-nos
negócios, como vender frutas nas esquinas?
Mesmo tomadas todas as precauções, as estatísticas podem ser
perigosas para quem as lê desavisadamente. Principalmente em assuntos
que representem alguma ameaça à vida. Os hipocondríacos e pessimistas
crônicos que o digam. Eles sabem o quanto é fácil se auto-incluir em
índices crescentes de mortalidade por doenças graves.
As pessoas se esquecem de que, quando se descobre a cura para uma
moléstia, a porcentagem de mortes causadas por ela naturalmente cai,
alerta Severo. Mas, como o total de mortes representa sempre 100%, a
porcentagem de óbitos por outras doenças tem de subir, avisa Severo aos
que se preocupam à toa.
A dica é não confundir possibilidade com probabilidade. Mesmo antes
do choque do cometa Shoemaker-Levy 9 contra Júpiter, em julho passado,
foi levantada a hipótese de que o mesmo poderia acontecer na Terra. A
crença no desastre se fortaleceu quando o Congresso americano anunciou
planos de investir 50 milhões de dólares num gigantesco programa de
prevenção à queda de cometas por aqui. A idéia dos congressistas
americanos é que a NASA desenvolva um siste--ma de rastreamento e
destruição de grandes objetos que eventualmente entrem em rota de
colisão com o planeta.
Mas qual é a probabilidade real de um cometa ou asteróide atingir a
Terra? É de uma vez a cada 100 milhões ou 200 milhões de anos, afirma o
astrônomo Augusto Damineli Neto, do Instituto de Astronomia e Geofísica
da USP e colaborador de SUPER. Damineli explica que o planeta é
bombardeado todos os dias por rochas menores, pesando até um quilo,
comuns no espaço. Mas, por serem muito pequenos, esses meteoros
desintegram-se assim que entram na atmosfera. Corpos maiores, como o
Shoemaker, são bem mais raros. Além disso, a Terra é um alvo minúsculo,
em termos astro-nômicos, e, portanto, difícil de acertar.
Como se acredita que o último cometa a passar por aqui tenha sido
aquele que eliminou os dinossauros da face da Terra, há 65 milhões de
anos, o mais provável é que a NASA tenha de esperar pelo menos outros
35 milhões de anos para colocar em uso as armas de caça a cometas. Ou
seja, existe a possibilidade, mas a probabilidade de que isso venha a
ocorrer é mínima.
Em se tratando de pesquisa, o mais provável é a única expressão que
se pode utilizar. Em Estatística não existem certezas pelo menos
enquanto os especialistas não fizerem o pacto com o demônio, tão temido
por Santo Agostinho. Ninguém é guru ou adivinho. A única verdade
abso-luta sobre Estatística é que, por mais próximo que os resultados
estejam da realidade, a probabilidade de se acertar exatamente na
‘mosca' é re-motíssi-ma, diz Bragança Pereira.